O curta-metragem “Cartas a Tia Marcelina”, oriundo do estado de Alagoas, é uma obra que conquistou recentemente o prêmio máximo da Mostra Ecofalante de Cinema, uma categoria dedicada exclusivamente a produções estudantis. Este filme, sob a direção de João Igor Macena, um talentoso aluno da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), não apenas recebeu o troféu Ecofalante, mas também um prêmio em dinheiro, ressaltando a excelência das produções audiovisuais que emergem do cenário independente brasileiro. A Mostra, realizada na vibrante cidade de São Paulo, apresentou 125 filmes provenientes de 33 diferentes países, sublinhando assim a força e a relevância do cinema regional, que é uma plataforma vital para vozes diversas no contexto contemporâneo.
Em uma entrevista à Gazeta de Alagoas, o diretor João Igor Macena compartilhou que essa realização vai além de um simples triunfo pessoal. Para ele, o reconhecimento obtido através deste festival representa uma oportunidade significativa de “potencializar a nossa história, nossa luta e nossa voz”, evidenciando a importância das narrativas locais.
A concepção do filme teve sua gênese em uma disciplina de Produção de Imagem e Som, sob a orientação da professora Ana Flávia, do curso de Teatro da Ufal. Durante este período, o grupo decidiu explorar a figura emblemática de Tia Marcelina, uma proeminente líder religiosa do candomblé que se tornou vítima de um dos episódios mais sombrios da história local, conhecido como Quebra de Xangô, ocorrido em 1912. Este tema, classificado como complexo, foi escolhido pelo grupo devido à sua relevância histórica e à necessidade de dar voz a esta narrativa esquecida.
O processo para a realização do curta foi repleto de desafios e exigiu um extenso trabalho de pesquisa. A equipe do filme visitou o Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGAL), onde se engajou em diálogos produtivos com cientistas e especialistas, como Anderson da Silva Almeida, que foi fundamental para o tombamento do acervo religioso da “Perseverança”, o templo que sobreviveu ao Quebra de Xangô.
Contudo, como Macena enfatizou, a maior parte do material utilizado no filme foi obtido por meio de relatos orais. As conversas com figuras religiosas respeitáveis, como Pai Célio e Pai Maciel, foram cruciais para preencher lacunas na narrativa histórica, permitindo que a equipe montasse um verdadeiro quebra-cabeça sobre essa parte significativa da cultura afro-brasileira.
O curta-metragem não só revisita o passado, mas também estabelece uma conexão profunda com os problemas enfrentados pela sociedade atual. A obra traça paralelos claros entre o Quebra de Xangô e eventos mais recentes de violência direcionada aos povos de terreiro, incluindo a desapropriação da comunidade Araguaia nos estados de Mato Grosso e Tocantins, identificada em 2015. A intenção é mostrar que o Quebra de Xangô não se limita a um evento histórico isolado; suas reverberações ainda são sentidas nas formas contemporâneas de violência e no racismo estrutural que permearam e ainda permeiam a vida dos afrodescendentes.
Com uma duração de 25 minutos, “Cartas a Tia Marcelina” inicialmente surgiu como um projeto acadêmico de apenas 14 minutos, mas, através de um ano de produção colaborativa, expandiu-se em uma narrativa rica e complexa. O filme conta com entrevistas significativas e incorpora cenas performáticas que homenageiam as tradições dos orixás e a literatura epistolar, retratando poeticamente a noite que precedeu o Quebra e a trágica morte de Tia Marcelina.
João Igor Macena enfatiza que o filme é um tributo à rica cultura negra e à arte afro-brasileira presente em Alagoas. Todas as músicas e performances apresentadas na obra foram criadas por talentos locais, reforçando a autenticidade e a essência do projeto.
Em setembro, “Cartas a Tia Marcelina” terá sua estreia internacional em Portugal, durante a Mostra Internacional de Curtas da GallerySPT. Apesar do reconhecimento recebido, João Igor não pretende descansar sobre os louros da vitória. “Transformamo-nos em um coletivo após a realização do filme, e já estamos trabalhando em novos projetos. O prêmio nos oferece um novo impulso para continuar nossa jornada criativa”, conclui o diretor, reafirmando sua determinação em dar continuidade a essa importante narrativa cultural.